Nasci com uma deficiência denominada Extrofia Vesical e Epispádias no ano de 79. Assim que acabei de nascer, pegaram em mim e levaram-me para Estefânia, hospital no qual fui operado 7 dias depois pelo ***. Esse belissimo doutor teve a gentileza de me usar para testar em mim todos os seus dotes de talhante, pois o melhor que conseguiu fazer foi estragar ainda mais o pouco que estava bem, cortar um bocado do osso da bacia sem necessidade, quiçá para em casa fazer um cinzeiro personalizado e macerar completamente os tecidos. Depois de me esquartejar, enfaixou-me, meteu-me numa incubadora e espetou-me um prazo de validade na testa: "não deve durar mais do que 2 meses". Os meus pais trouxeram-me para casa, convictos de que não duraria mais do que dois meses. Inconformados com tal situação, ainda pediram ajuda ao nada *** para que passasse algum relatório médico afim de me levarem ao estrangeiro para ver se encontravam solução para o meu caso, mas esse monstro disse explicitamente que não tinha tempo para essas coisas e que o melhor era nem gastarem dinheiro em viagens porque eu não duraria muito e também não devia haver grande coisa a fazer. Com tal resposta e sem outra solução, os meus pais trouxeram-me para casa para morrer, de acordo com o sapateiro... desculpem, médico. Mas olha, milagre ou não sei, acabei por passar do prazo de validade e não criei bolor... Os meus primeiros 3 anos de vida foram passados com a bexiga completamente no exterior do meu corpo... conta a minha mãe que era algo semelhante a uma batata enfiada num buraco na bacia, na qual vertia urina ao seu redor. Não tenho fotos de tal e ainda bem, acho que não seria bonito de se ver. Por acaso do destino, aos 3 anos de idade fui para às mãos do meu ainda médico cirurgião que tem feito tudo e mais alguma coisa para me ajudar... só não faz mais porque não pode... Assim que fui consultado pelo meu médico, o doutor ***, de imediato este disse à minha mãe que eu NUNCA deveria ter sido operado tão cedo, pois o meu problema resolvia-se com apenas duas operações se as mesmas ocorressem a partir dos 3 anos de idade... mas, devido à carnificina que foi a primeira operação, ainda estou a sofrer passados 28 anos... De qualquer forma, o meu médico decidiu pegar em mim e fazer tudo para me ajudar... começou então uma longa saga de operações que ainda hoje dura... Fui operado cerca de 5 vezes apenas para meter a bexiga para dentro e reconstruir toda a zona genital... infelizmente, a maceração dos tecidos revelou ser um dos piores entraves à minha recuperação, pelo que nos anos seguintes vi-me acometido de sucessivas fistulas na zona genital que não ajudavam em nada o bom progresso da minha situação. Fui operado mais 6 vezes, apenas para tentar fechar as ditas fistulas, mas estas teimavam sempre em reabrir... além de que estava incontinente, pois não tinha esfincter na bexiga... Lembro-me do quanto sofri durante todas essas operações por causa das algálias que me colocavam e por causa dos pontos... É claro que, no interregno das operações, eu tinha uma vida "normal"... fui à escola, entrei aos 6 anos para a mesma e recordo o quão dificeis foram os meus anos de primária e preparatória, pois nessa altura não havia ainda fraldas descartáveis da Lindor e as que eu usava eram de pano com uma daquelas cuecas de plástico com elástico que vendiam antigamente nas farmácias... Muitas vezes molhava as calças e tinha que ir a correr para casa para mudar as fraldas... depois, a urina assava-me toda a pele e tinha que usar cremes para me proteger... Depois, as crianças conseguem ser muito crueis e lembro-me que naqueles anos de fraldas de pano estendidas na janela depois de lavadas para secar, espalhou-se o boato óbvio de que eu usava fraldas... e lá estavam os meus coleguinhas de escola e as outras crianças do bairro a gozarem comigo... Mas enfim, nem todos eram maus e lá conseguia passar os anos com notas boas... é claro que, chegadas as férias grandes, quando todos os outros iam para a praia divertirem-se e brincarem, eu dava entrada no hospital para mais uma operação... e a minha mãe acompanhava-me. Entretanto, ao final da 12ª operação, lá o meu médico conseguiu fechar por completo as fistulas... e até hoje não mais apareceram... Fechadas as fistulas, passámos então para a resolução da incontinência... passo esse que se revelava complicado, pois faltava-me o esfincter, gentilmente esquartejado pelo Martins. No agora longinquo ano de 1996 o meu médico decidiu aplicar-me uma injecção de teflon nos tecidos da uretra, de forma a formar uma especie de esfincter artificial... estava eu nas férias grandes depois de acabar o 9º ano e à espera de entrar para o 10º ano... Lá fui eu para mais uma operação, mas esta mostrava ser mais simples, era apenas uma simples injecção e introdução de um liquido através da uretra. É claro que teria que ser internado e anestesiado por completo, mas pelo menos era uma solução para a incontinência e o fim das fraldas, que naquela altura já eram descartáveis... Lembro-me que, no dia em que dei entrada no hospital, o Pulido Valente, assim que passei as portas da enfermaria, fui acometido de um ataque de pânico gigantesco, comecei a gritar por todo o lado, a tremer, a dizer que não queria ficar ali, que queria ir embora, batia com os punhos nas paredes e os meus pais tiveram que me trazer para a rua para me acalmarem... não sei se foi pressentimento ou premonição, mas depois do que aconteceu, desconfio que já estava a adivinhar o desfecho de tal operação... Acontece que não cheguei a ser verdadeiramente operado, a minha uretra não tinha diâmetro suficiente para a introdução da agulha, pelo que tiveram que me algaliar com uma algália de distensão de forma a alargar o "canal"... mandaram-me para casa com a algália e disseram-me para voltar lá passados 2 meses... Este foi um dos periodos mais complicados, sofriveis e horriveis da minha vida... para começar, não podia sair de casa, porque tinha imensas dores provocadas pela algália... depois, isto aconteceu exactamente um mês antes das aulas começarem, pelo que tive forçosamente que faltar às aulas... Passadas umas semanas, tive que voltar ao hospital para trocar a algália, porque a que tinha estava a ficar entupida... foi mais um periodo de dores e sofrimento... Voltei para casa com a algália e assim fiquei com ela durante quase 4 meses... quando a tirei de vez, foi um alivio e o meu médico tratou logo de marcar nova operação... Infelizmente, a dita algália que era de silicone desencadeou na minha pele uma alergia tremenda, começaram-me a surgir borbulhas e verrugas enormes que rebentavam com pus... e com a urina sempre a passar por lá, acabavam por infectar e doer ainda mais... A solução: queimar a alergia com neve carbónica. Note-se que nesta altura já tinha anulado a matricula, pois não consegui recuperar o tempo perdido de aulas e andar na escola por andar não valia a pena, pelo que decidi anular esse ano na esperança de recomeçar o 10º no ano seguinte... A primeira sessão de queima com neve carbónica até soube bem, aquilo era fresquinho, mas à medida que as sessões iam continuando, as dores iam aumentando exponencialmente. Cheguei a um ponto em que saía das sessões sem conseguir andar, tal eram as dores. A pele ficava literalmente congelada, queimada pelo gelo e depois o descongelamento ainda doia mais devido ao facto da urina passar pela pele... Fui obrigado a tomar uns comprimidos para as dores chamados Tramal, comprimidos esses que me deixavam num estado completamente drogado e alucinado... mas era algo que não podia tomar sempre e as dores eram persistentes... Lembro-me de que não conseguia estar sentado muito tempo, porque a pele começava logo a arder com dores... também não conseguia estar deitado... foram meses de martirio até conseguir dar conta da alergia... Infelizmente, esta alergia era sazonal, reaparecia sempre todos os anos por volta da época do Verão... impossibilitando desta forma que eu fosse operado, pois havia o problema de contágio para os tecidos interiores...
Durou 5 anos este sofrimento, só ao final de 5 anos é que consegui matar a alergia de vez... No ano seguinte, embora ainda estivesse incontinente e usasse fraldas descartaveis da Lindor, matriculei-me no 10º ano para recomeçar a minha vida escolar... e, à parte dos meus problemas de saúde, os 3 anos que se seguiram foram, ao mesmo tempo, os melhores e os piores da minha vida... Foram os melhores porque fui parar a uma turma nova, ninguém me conhecia, ninguém suspeitava do meu problema e todos nos dávamos bem. Fiz amigos, fiz amigas e conheci o meu primeiro grande amor... Até então nunca havia tomado a iniciativa de namoriscar alguém porque o meu problema não o permitia e também não conseguia vislumbrar uma solução para o mesmo a curto/médio prazo. Mas os tempos de adolescência são terriveis e não podia mais suprimir os meus sentimentos... Conheci então uma rapariga, colega de turma pela qual me apaixonei perdidamente... alimentei tal amor durante algum tempo sem ela saber, sempre na esperança de um dia a ela me declarar e, como tal, ser-lhe sincero em relação à minha deficiência... Eis que chega um dia em que me decidi declarar-me a tal colega... fi-lo por carta, expondo-lhe os sentimentos que nutria por ela, mas não lhe contei sobre a minha deficiência nesse momento, dizendo apenas que tinha um segredo que gostava de partilhar com ela caso aceitasse o meu namoro... ainda não tinha nenhuma experiência nestas coisas do amor e acho que acabei por fazer asneira e assustá-la, pois ela recusou corresponder aos meus sentimentos... Fiquei de rastos... bati completamente no fundo... estava de tal maneira obcecado pela miuda que acabei por fazer muita asneira nos anos que se seguiram... e foram 4 anos desperdiçados da minha vida, 4 anos que vivi obcecado por um amor nunca correspondido, 4 anos que vivi cego e desesperado... Vivia completamente sem razões para tal e cheguei mesmo a pensar no suicidio, mas nunca o concretizei por falta de coragem... Findos os 4 anos, lá acabei o 12º ano... a minha paixão ingressou no ensino superior e deixei de ter contacto com ela... e foi o melhor que me aconteceu, pois consegui assim dar um novo rumo à minha vida, voltar a subir à tona... Entretanto, as operações continuavam, ainda fiz duas injecções de teflon, mas o raio do produto não aderia aos meus tecidos, porque estavam demasiado macerados devido à primeira operação feita por aquele-cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado... Sem solução à vista para a incontinência e sem possibilidades de ingressar no ensino superior devido às notas baixinhas e à falta de dinheiro porque o meu pai estava desempregado, decidi aceitar uma proposta de trabalho para ocupar o tempo... A proposta partiu de uma senhora para a qual a minha mãe limpava a casa já há 6 anos... a senhora era muito amiga da minha mãe e como ela e o marido tinham uma loja e precisavam de alguém para fazer o trabalho de escritório, ela perguntou se eu estaria interessado. Eu aceitei o trabalho de imediato, afinal era uma pessoa quase de familia e que queria o meu bem, pensava eu... Acertámos as condições e o ordenado e lá comecei eu a trabalhar... infelizmente, nem tudo correu pelo melhor, pois vim a descobrir que de senhora essa mulherzinha não tinha nada... No final do segundo mês de trabalho, essa mulher passa-me para as mãos um envelope contendo o ordenado do mês... quando o abro, vejo que só lá estavam metade dos 40 contos (naquela altura ainda eram contos) que deveria receber, de acordo com as horas que havia feito... Foi a minha prova de fogo... pensei bastante se haveria de a confrontar com tal engano ou se deveria calar e continuar a trabalhar, mas decidi que não podia ficar calado... confrontei-a com o engano nas contas, mas a mulher não deu o braço a torcer, recusou sempre rectificar o pagamento e ainda disse que não esperava que eu tomasse tal atitude, porque tinha um problema e era um coitadinho... Para mim, foi a gota de água, disse adeus e não mais voltei a meter os pés naquela loja nem a falar com aquela mulher... Não gosto que me tratem como um coitadinho só porque sou deficiente... Sem trabalho e sem poder estudar, inscrevi-me num curso de formação profissional através do centro de emprego... e foi o melhor que me aconteceu. Conheci caras novas, fiz amizades e acabei com um curso profissional que me pode abrir portas a empregos e trabalhos.
Mas eu não podia... eu tinha que fazer aquela operação por tanta gente, pela minha namorada, pelos meus pais... só não sabia se a queria fazer por mim... e era isso que estava a deixar-me de rastos... A hora da operação aproximava-se, eu não conseguia tomar uma decisão definitiva e tinha que ir para o bloco. Meteram-me na maca, levaram-me para o bloco e quando lá cheguei o meu médico veio falar comigo, perguntou-me o que se passava, eu expliquei que estava com muitas duvidas, mas ele disse que ia correr tudo bem, para não me preocupar... Sem outra hipótese, lá concordei e dei entrada no bloco. E aqui começa o pesadelo. Para começar, de todas as operações que fiz, esta foi a mais estranha. Sempre me lembrei do momento em que adormecia no bloco, fosse com uma injecção, fosse com máscara de gás. Mas lembrava-me sempre de falar com o pessoal médico, de vir o sono e fechar os olhos, de adormecer. Mas nesta operação foi totalmente diferente, totalmente estranho. Não me consigo lembrar de adormecer. Só me recordo que me pediram para voltar de lado, pois iam dar-me uma epidural e quando me pediram para arquear as costas, assim que o fiz, simplesmente apaguei. Foi como se de um momento para o outro eu tivesse deixado de existir. Foi, até hoje, a anestesia mais estranha que me deram.
Seis horas depois, acordei já nos cuidados intensivos. Lembro-me que a minha mãe estava junto a mim e a primeira coisa que perguntei foi se a operação tinha corrido bem. Ela respondeu que sim, que correu muito bem, que estava tudo bem. Eu não conseguia mexer-me, não conseguia abrir os olhos... Lembro-me que uma enfermeira chegou-se perto de mim e começou a mexer nas máquinas que estavam ao meu redor... depois começou a mexer no penso que tinha na barriga, depois nos tubos que saiam da minha barriga... lembro-me que havia muito barulho e muita luz, mas já era quase de noite. Voltei a adormecer. Os dias seguintes foram passados nos cuidados intensivos. Os primeiros 3 dias passei-os quase sempre a dormir, ainda estava sob o efeito da epidural, não tinha dores, mas estava muito incomodado, porque tinha uma sonda enfiada pelo nariz até ao estômago e não conseguia engolir. Tinha também várias agulhas de soro nos dois braços e numa das mãos, além de um cateter central no pescoço. Os dias até se passavam bem nos cuidados intensivos, o pior eram as noites. Eu queria dormir, mas lá não apagavam a luz e os enfermeiros teimavam em conversar alto e em fazer muito barulho. Simplesmente deixei de dormir de noite e passei a fazê-lo de dia. Outra coisa que para mim era muito dolorosa e chata eram os banhos. Eu não me conseguia mexer, sempre que o fazia doia-me tudo... Sempre que me vinham dar banho, lá tinha eu que me mexer e ficava cheio de dores... Ao 4º dia, deram ordem aos enfermeiros para me levantar da cama e sentarem-me num cadeirão... já não podia estar mais deitado... foi horrivel!!! As dores foram imensas, doia-me o corpo todo, não tinha posição para estar sentado, além de que me fazia impressão todos os tubos que saiam do meu corpo e a sonda que saia do meu nariz... Entretanto, os meus pais e a minha namorada vinham visitar-me dia sim, dia não... mas como ainda estava nos cuidados intensivos, não podiam ficar muito tempo comigo e eu também não podia ter o telemóvel comigo e telefonar-lhes, pelo que me sentia muito só e abandonado às vezes... Uma semana e meia depois, mudaram-me para a enfermaria, para um quarto de 5 camas. Foi uma mudança horrivel, porque ainda não conseguia mexer-me sem que me doesse tudo e em vez de me levarem deitado na cama, levaram-me ao empurrão no cadeirão, batendo nas esquinas, estremecendo tudo. O quarto estava ocupado por outros 4 doentes. Ao meu lado tinha um senhor que aparentava ter mais de 70 anos, mas que na verdade não passava muito dos 50. Tinha diabetes, fazia hemodiálise e ainda era ostomizado. Era um senhor muito culto e com quem conversava várias vezes. Nas camas do outro lado tinha um senhor sem pernas e com um problema mental que dava em ligar um rádio todo o dia com o som bem alto para ouvir relatos da bola e missas. Ao lado desse havia um velhote que lá estava já há uns 6 meses e tinha um problema de intestinos e por fim havia outro senhor que não tinha uma perna e que passava o dia a gemer com dores. Eu continuava cheio de drenos, tubos, sacos e sondas. O que mais me incomodava era mesmo a sonda que tinha no nariz, era horrivel, queria engolir e não conseguia, depois provocava-me vómitos... Só ao final de uma semana é que me retiraram a sonda do nariz. Foi um alivio. Puseram-me logo a comer e que bem que me soube. Já me mexia um pouco mais, já não tinha tantas dores, parecia que tudo estava a correr mesmo bem... parecia um milagre... Infelizmente, alguma coisa tinha que correr mal... Numa noite, não conseguia dormir, suspeitava que era do colchão porque estava a ficar com dores nas costas... ainda pedi a uma auxiliar para me virar o colchão, porque estava a fazer cova, mas mesmo assim não conseguia dormir... então, decidi experimentar sentar-me num cadeirão e até funcionou, lá consegui adormecer... mas na madrugada seguinte, acordei com dores horriveis, uma dor constante e aguda que me vinha do lado esquerdo das costas e apanhava toda a barriga. As enfermeiras vieram logo em meu auxilio e chamaram a médica de serviço... assim que chegou, começou a ver-me e então deu-me um murro bem forte no rim esquerdo. Eu gritei como nunca com as dores e a médica disse que, provavelmente, estava com uma cólica renal. Decidiram fazer-me exames, mas como era um domingo, tinha que ser transferido para outro hospital para fazer esses exames. Os meus pais tomaram conhecimento do meu estado e foram para o hospital. A minha namorada também apareceu porque já estava combinado ela ir-me visitar. Lembro-me que quando eles chegaram, apareceram também os bombeiros para me levarem... eu continuava cheio de dores, nada me tirava as dores, só de respirar doia-me o corpo todo e estava também a ficar com vómitos e enjôos. Lembro-me que, quando os bombeiros me meteram na maca e começaram a levar para a ambulancia, passei pelos meus pais e pela minha namorada e ela perguntou-me se eu estava bem, mas eu não consegui responder... ainda olhei para trás e vi-a começar a chorar... Levaram-me então para o hospital São Francisco Xavier para fazer uma ecografia e uma TAC. A viagem de ambulancia foi horrivel, aquilo tremia por todos os lados, dava-me a sensação de que ia cair da maca e sempre que me mexia tinha dores agudas. Ao chegar ao hospital, fizeram-me a ecografia e nela descobriram que tinha liquido na barriga e que era isso que me provocava as dores. Mas não havia indicios sobre de onde viria esse liquido. Então fui fazer a TAC. Eu não conseguia deitar-me numa posição completamente horizontal, por causa da costura na barriga e por causa das dores. Mas para fazer a TAC tinha que me deitar numa maca cujas costas não podiam ser reguladas. Foi complicado conseguir estar tanto tempo deitado, ainda cheguei a vomitar. Findos os exames, voltei para o hospital. Os meus pais ainda lá continuavam, mas a minha namorada já tinha voltado para casa, porque já era tarde. O diagnóstico estava feito, liquido na barriga, mas com origem desconhecida, não havia fugas de lado algum. Hoje desconfio que isto pode ter tido origem no facto de me terem dado comidas sólidas demasiado cedo. Medicaram-me com algo para tal. O medicamento, do qual não me recordo do nome, tinha um efeito secundário muito chato: atacava-me a vesicula biliar. Então, sempre que me davam o medicamento, começava a vomitar um liquido verde, chegava a encher sacos com os vómitos. Então, para contra-atacar os vómitos, deram-me outro medicamento que tinha dois efeitos secundários: ou me deixava num estado de dormência e com sono, ou me deixava num estado de agitação tal que eu não parava de bater com as mãos na cabeça... Entretanto, retiraram-me também o dreno, algo que foi fácil de fazer, 3 puxões e já estava cá fora. Mas persistia um problema: ao fazerem-me o estoma, saí do bloco algaliado pelo dito estoma e com 2 drenos que se ligavam aos ureteres, ou seja, a maior parte da urina era esvaziada pelos drenos para um saco e uma pequena parte da urina ia para o saco interno e depois saía pela algália do estoma para outro saco. O calendário da minha operação ditava que os drenos fossem retirados na segunda semana de operado e a algália na terceira semana. Mas o liquido que me apareceu na barriga veio atrasar esse calendário. Todos os dias me tirava sangue. Fiquei um mês internado e todos os dias me tirava sangue. Cheguei a um ponto em que já não tinha veias e então começaram a tirar-me sangue nas mãos, o que é muito doloroso. Quando fiquei livre do liquido na barriga, tiraram-me os agrafos, coisa que pensei que doesse mais do que na verdade aconteceu. Depois tiraram-me os drenos que estavam ligados aos ureteres, de forma a que a urina passasse a ir toda para a bolsa interna. Mas mantiveram-me a algália e mandaram-me para casa. Passada uma semana deveria voltar ao hospital para retirar a dita algália.
O mês que passei no hospital foi muito conturbado. Entrei num estado de depressão, questionava-me sobre se deveria mesmo ter feito tal operação, mas tanto os meus pais como a minha namorada diziam que era o melhor para mim. Foi-me então marcada uma consulta para o psicólogo, pois além de estar num estado de depressão, também começava a ficar demasiado revoltado com tudo o que me havia acontecido até então, coisa que nunca havia pensado antes. Foi uma semana complicada a que passei em casa algaliado... pensei que me fosse sentir melhor, mas continuava num estado de ansiedade tremendo... Felizmente, a semana passou depressa e na quinta-feira seguinte estava no hospital para retirar a algália e recomeçar uma vida completamente nova e feliz... pensava eu... mas estava completamente enganado... Como disse anteriormente, passado um mês de ser operado e de internamento, eis que me enviam para casa. Finalmente, ia para casa. Ainda trazia a algália que estava metida na bolsa interna e saía pelo estoma. O saco ainda não tinha condições para reservar toda a urina sozinho e por isso ainda tinha que ficar algaliado mais uma semana. Foi uma semana complicada a que passei em casa. Sempre que me sentava à mesa para comer começava a tremer involuntariamente e não conseguia parar, devido ao trauma psicológico de ter comido e ficado com liquido na barriga. Depois, a algália não era completamente estanque, pelo que de vez em quando vertia urina pelo estoma e tinha que andar a mudar o penso. Ainda estava muito fraco e debilitado, não tinha forças nem para subir uns degraus e ainda me doia a costura na barriga. Todas as manhãs, ao acordar, vomitava uma espuma amarela e ficava com o estômago todo torcido. A minha namorada continuava a visitar-me... Passada uma semana, volto ao hospital para retirar a algália e recomeçar uma nova vida, pensava eu. Assim que cheguei fui consultado pelo meu cirurgião, que me retirou a algália sem problemas, depois esteve a limpar o estoma e por fim exemplificou o que teria que fazer a partir daquele momento: de duas em duas horas, teria que enfiar uma sonda no estoma até ao fundo da bolsa interna para assim a esvaziar. Eu fi-lo naquele preciso instante, ainda receoso de que me fosse doer ou algo do género, mas não. Não me doia nada, era super-simples enfiar a sonda e esvaziar a bolsa. Saí da sala de pensos apenas com uma gaze a tapar o estoma e felicissimo da vida. Não me sentia tão feliz assim desde há muito tempo. O meu médico passou-me então uma receita para comprar caixas de sondas e vim embora.
Infelizmente, a minha felicidade durou 15 minutos. Passados 15 minutos, estava eu no carro, começo a sentir a roupa humida e quando levanto a blusa, estava completamente encharcado e o estoma estava a esguichar urina por todo o lado. Entrei em pânico, voltei ao hospital, mas o meu médico já tinha saído... as enfermeiras estiveram a ver, mas não sabiam o que fazer... então, fizeram-me um penso sobre o estoma, de forma a absorver a urina que saía como se nada houvesse para a travar... como se continuasse incontinente. É impressionante como é que uma pessoa consegue passar de um estado de felicidade para um estado de pânico e desespero numa questão de minutos, mas naquele dia foi o que me aconteceu. À noite liguei para o consultório do meu médico, contei-lhe o que havia acontecido e ele disse-me para ir ao hospital no dia seguinte para ver o que se passava. Na manhã seguinte, lá estava eu deitado na maca a ser visto pelo médico. Conclusão: por causa do liquido que me apareceu na barriga, o calendário da operação não foi cumprido, a algália permaneceu tempo demais e deu cabo do sistema valvular do estoma e por isso o mesmo não conseguia reter a urina no saco interno. O meu médico colocou-me então uma placa e um saco de urostomia e disse-me que conseguia resolver a situação com uma injecção de um produto no estoma, que iria contrair os musculos e as paredes. Fiquei de voltar ao hospital uma semana depois para marcar então essa nova intervenção. Voltei para casa. A primeira semana que passei com a placa e o saco de urostomia foi horrivel, eu não sabia lidar com aquilo, estava num estado de depressão tremendo, vomitava a toda a hora sempre que olhava para o saco que tinha colado na minha barriga. Foi sempre a unica coisa que exigi desta operação: que não ficasse com um saco colado à barriga. E era isso precisamente que estava a acontecer. A minha namorada começava a mostrar sinais de desconforto e de desilusão para com a minha situação.
Precisamente 2 dias antes de voltar ao hospital para falar com o meu médico, a placa que ele me havia colocado começou a descolar. Durante a noite, acordei sobressaltado com a cama molhada, a placa havia descolado e nem eu, nem os meus pais sabiamos o que fazer, não tinhamos outras placas para trocar nem nada. Ainda telefonámos para o 112, mas chego à conclusão que é inutil fazê-lo, pois disseram logo que nada podiam fazer e que o melhor era ir às urgências do hospital da minha zona. Eu não podia ir ao hospital onde fui operado, pois a minha casa fica a mais de 50 km de distância, então tive que ir às urgências do hospital de Setúbal. Eram 5 horas da manhã quando lá cheguei e o unico médico que lá estava a atender foi do mais insensivel e desumano que alguma vez encontrei. Entrei, expliquei-lhe o que se passava, o que havia feito, qual era o meu estado e o que precisava: que me trocassem a placa. O médico primeiro disse que nem sabia se haviam placas no hospital. Depois disse que devia era ir ao hospital onde fui operado. Depois ainda disse que aquilo não era nenhuma urgência. Por fim, e depois de me ver cada vez mais nervoso, lá mandou um enfermeiro à procura de placas e sacos de urostomia. Felizmente, o enfermeiro conseguiu encontrar uma placa e colocá-la. Diga-se que notei uma diferença ENORME na mentalidade das pessoas que vão ao hospital entre o de Setúbal e o de Lisboa. Em Lisboa, eu podia entrar na sala de espera para consultas externas com uma algália na mão que nenhuma das 3 dezenas de pessoas que lá se encontravam olhavam para mim ou faziam algum tipo de pergunta. Aqui em Setúbal bastou-me entrar um pouco mais curvado e combalido e com as mãos na barriga, a segurar as toalhas que se encontravam por baixo da blusa e veio logo uma pessoa perguntar o que se passava com ares de bisbilhotice. É impressionante. Passados dois dias, lá voltei ao hospital, onde tratei de marcar nova intervenção para resolver o problema do estoma. O meu médico disse-me então que, até lá, teria que andar com uma placa e um saco de urostomia e passou-me uma receita para os comprar na farmácia. Nesta altura já eu estava completamente desiludido com toda esta situação. Afinal, nada do que me haviam dito tinha acontecido, só apareciam chatices atrás de chatices... todos os meus planos estavam arruinados, assim como a minha saúde... Tudo isto aconteceu em Março/Abril. Foram complicadas as primeiras semanas em que tinha que trocar a placa e o saco de urostomia. Tenho a minha mãe para me ajudar nestas coisas, mas não sabiamos muito bem como lidar com isto... Eu continuava com depressão e vi-me obrigado a tomar uma caixa de Diazpan que me ajudou bastante. Entretanto, comecei também com as consultas no psicológo. Mas o problema mantinha-se... eu continuava e continuo, para todos os efeitos, incontinente. A unica diferença é que agora não uso fraldas descartáveis, mas placas e sacos de urostomia. Ainda fui a uma junta médica, afim de ver se podia ter direito a alguns apoios, mas nada. Apenas serve para efeitos de IRS e isso para mim não é nada. O Estado comparticipa-me em 90% a compra das placas e dos sacos de urostomia, mas não das sondas, coisa que terei que usar para o resto da vida. Continuo à espera da operação para corrigir o problema do sistema valvular do estoma.
Entretanto, a minha namorada não aguentou a situação e decidiu acabar com a relação. Ela não esperava que a operação desse este resultado, ficou desiludida demais e sem esperanças nem forças para continuar. Quando mais precisava, fiquei sem o seu apoio. Mas a culpa não é só dela, sei que isto teve uma mãozinha da mãe dela também, que nunca gostou de mim nem aprovou a nossa relação porque eu era deficiente. Estou de baixa desde que fui operado, não tenho forças nem vontade para trabalhar neste estado, não quando a placa que coloco em mim só me dá garantias de bom funcionamento nos primeiros 2 dias, depois disso pode descolar a qualquer momento. E o saco também é muito instável, pode romper-se com os movimentos da roupa... até ser novamente operado, vou continuar de baixa...
Meti-me numa operação da qual tinha muitas duvidas, meti-me numa operação que não queria fazer por mim, mas que tinha que fazer pela minha namorada e pelos meus pais. Passei 30 dias de sofrimento no hospital, fiquei com uma depressão profunda, com traumas, com uma cicatriz enorme na barriga, tiraram-me a bexiga, fiquei com uma anemia que ainda hoje não consegui controlar, com os niveis de colesterol altissimos, com problemas cardiacos (arritmias subitas, às vezes o coração começa a bater tão depressa e tão forte que parece que vai explodir), com a tensão altissima (mais de 20) e com um saco colado na barriga. Não posso tomar banho todos os dias como fazia antes por causa da placa e do saco, porque se se molharem, descolam. Não tenho autonomia como antes, preciso sempre que alguém me ajude a trocar a placa e o saco porque não consigo colocá-los sozinho e tenho que beber um copo de água com bicarbonato de sódio duas vezes por dia. Perdi a namorada e todos os planos que tinha idealizados para depois desta operação foram arruinados. Queria ter ido à praia este ano com a minha namorada pela primeira vez desde há muitos anos e não posso. Queria viajar e passar noites fora de casa e não posso. Sim, estou revoltado. Estou revoltado com esta maldita operação que não queria fazer, estou revoltado com a minha namorada que me abandonou, estou revoltado com toda a gente que anda por este mundo fora e não sabe o que é sofrer e ter desgostos. Não tenho forças nem vontade para nada, passo os dias em frente ao computador na internet, que é a unica coisa que me distrai. Não tenho amigos, porque nunca os pude fazer, pois tinha um problema para esconder e não podia sair à noite com eles, nem podia beber com eles, nem podia ficar muito tempo fora de casa. Eu era forte, eu tinha uma vida independente, eu trabalhava, eu saía e passeava, eu namorava, eu tinha planos... e tudo isto a usar fraldas descartáveis. Depois fiz uma operação que supostamente devia dar-me uma vida ainda melhor... mas o que fez foi arruinar com tudo o que eu tinha de bom. Não me resta nada. Não tenho nada, nem sonhos, nem esperanças... quanto mais o tempo passa, mais revoltado me sinto. E eu não gosto de me sentir assim. E não gosto de me sentir sozinho. Parece-me que, a partir do momento em que adormeci naquela mesa de operações, comecei a ter um pesadelo do qual ainda não acordei... do qual nunca vou conseguir acordar. Cada dia que passa, só consigo pensar numa coisa: em acabar com tudo de vez, em desaparecer de vez. Eu simplesmente cheguei a um ponto em que não consigo ver razões para continuar, por mais que olhe ao redor. Eu sempre fui forte até fazer esta operação. Sempre soube o que queria para o futuro, sempre soube como alcançar esses objectivos. Eu era uma pessoa psicológicamente forte. Depois, a minha vida só faz sentido se tiver com quem a partilhar. E como nunca soube fazer amizades e mantê-las, como nunca soube conquistar alguém, no momento em que o consegui, passei a fazer tudo em função dessa pessoa. E eu sentia-me bem assim, porque tinha um objectivo. Mas agora não tenho nada. Eu não tenho amigos, primeiro porque para fazer amigos demoro algum tempo a estudá-los, pois não gosto e não posso relacionar-me com qualquer pessoa. Depois também não posso ser sincero com os amigos que faço no que toca à minha deficiência, logo chega um momento em que estes começam a afastar-se de mim ou eu deles... é complicado ter que inventar uma desculpa para não ir para a discoteca numa noite qualquer porque já passa do 3º dia que coloquei a placa e o saco e a qualquer momento pode começar a descolar... e isto é agora, porque antigamente tinha as fraldas para me preocupar... como é que podia explicar que não podia ir directo de um jantar de aniversário para uma discoteca sem passar primeiro por casa para mudar a fralda? Ou seja, sempre tive a vida muito condicionada e isso condicionou-me as amizades também... Depois, tenho dificuldades em conquistar alguém também... porque, lá está, é complicado explicar a minha deficiência e esperar que a outra pessoa compreenda... e 99% das vezes não compreende... então, desperdiço tempo, desperdiço forças e energias em algo que acaba por não resultar... sofro desilusões e para quê? Para nada... Trabalhar para quê? Não tenho independência, principalmente agora que estou ainda mais dependente do que quando usava fraldas, logo não faz sentido que trabalhe... Também não tenho nada que me desperte a atenção, não sou materialista, não ligo a marcas e às aparencias... Porque é que hei-de trabalhar e ganhar dinheiro para comprar um carro e uma casa se não tenho com quem partilhar tudo isso? Para quê passar por mais operações, passar por mais sofrimento, se depois não tenho com quem partilhar a minha alegria? Eu só sei fazer alguma coisa, só sei delinear o meu futuro em função de alguém, alguém que me ame, alguém que eu possa amar e com quem possa partilhar a minha vida. Eu não tenho ninguém, perdi tudo, perdi a minha saúde, perdi os meus sonhos, perdi o meu futuro. Para quê continuar assim?
Enquanto ainda estava no hospital, lembro-me de um dia, no meio de choro e desespero, dizer a uma enfermeira que queria morrer... desde esse momento que penso nisso e quanto mais o tempo passa, mais convicto fico de que é a unica solução... é a unica coisa que fará sentido na minha vida. Eu só queria poder voltar atrás e continuar com a vida que tinha... ... Como disse antes, não havia conseguido comparticipação das sondas pois a funcionária da tesouraria e o director do centro de saúde da minha área diziam que as mesmas não eram comparticipadas e que não se encontravam na lista de material comparticipado do estado. Ora, inconformado com tal situação, decidi investigar por conta própria e eis que venho a descobrir que as tais sondas afinal podem ser comparticipadas sim... desde que lhes dê outro nome. Quem fez as listas de comparticipação, decidiu chamar as sondas de algálias, pelo que voltei ao centro de saúde já com a lista do material, porque nem isso eles lá tinham nem se deram ao trabalho de a ir buscar à internet, apresentei-lhes aquilo, espetei-lhes com a lista na cara e exigi a comparticipação. É claro que tiveram que aceder a tal exigência. Fico tão revoltado com estas situações, por causa da incompetência de uma funcionária e do director do centro que não se deram ao trabalho de olhar para um par de listas, eu podia ficar lesado financeiramente para sempre. É triste que gente assim esteja por detrás de serviços tão importantes para a população em geral. Mas pronto, pelo menos, já consegui uma das coisas que queria: a comparticipação das sondas. 3 de Dezembro de 2007: Tenho passado por muito nas ultimas semanas. Acho que estou finalmente a recuperar as forças que havia perdido e, principalmente, a recuperar a esperança. E tudo graças a um pequeno grupo de pessoas que conheci recentemente e que me fizeram ver que, afinal, ainda vale a pena sonhar e lutar. Como havia dito antes, tenho uma dificuldade imensa em socializar com pessoas desconhecidas, precisando antes de as estudar a fundo para saber como lidar com tais pessoas. Mas nas ultimas semanas, uma grande amiga minha tem-me ajudado nesse sentido, empurrando-me literalmente para junto das pessoas, obrigando-me a socializar. Esta minha amiga não tem conhecimento da minha deficiência, mas por já termos uma amizade com quase 10 anos, conhece-me em parte e sabe dos meus problemas a nivel psicológico. Tendo ela também os seus próprios problemas e os seus próprios receios, eis que acabamos por nos apoiar mutuamente e assim dar força um ao outro. E é isso que tem acontecido. Eu encontro no apoio que lhe dou um objectivo e ela retribui ensinando-me a socializar com pessoas completamente desconhecidas. E assim descobri um pequeno grupo de pessoas com quem tenho passado as noites num agradável e ameno café a conversar e que me faz pensar que, afinal, nem tudo é mau. E o mais importante foi que consegui confiar a fundo numa dessas pessoas ao ponto de desabafar e revelar o meu problema. Como o consegui fazer não sei, só sei que depois de muito conversarmos pela noite dentro, algo me fez ver que podia confiar em tal pessoa e naquele momento, a vozinha que me massacra constantemente a consciência, que está sempre a avisar-me sobre o que não posso falar, sobre o que não posso revelar, sobre o que tenho de mentir e esconder, essa vozinha calou-se, dando-me um sinal de que podia ser verdadeiro, sincero... e assim o fiz. Desabafei, deitei tudo o que tinha dentro de mim cá para fora e acabei por descobrir que, afinal, ainda há pessoas nas quais posso confiar sem receios, ainda há pessoas que compreendem o meu problema e que me aceitam tal qual como sou. A conversa prolongou-se pela noite dentro, despedimo-nos perto das 6 horas da madrugada, mas senti-me tão bem, tão aliviado como até então não me havia sentido. A pouco e pouco, sinto que a minha esperança é renovada sempre que estou com tais pessoas, com estes novos amigos e amigas que conheci por intermédio da minha grande amiga. Já não me sentia tão feliz desde há muito tempo.
15 de Maio de 2008: Bem, o tempo passa cada vez mais rápido... Continuo à espera da cirurgia de correcção, imagino que sendo o meu caso não tão urgente para o hospital como é para mim, estarei decerto no fundo da lista de espera... Entretanto, regressei ao trabalho, não podia nem aguentava mais continuar em stand-by à espera de uma operação que tarda em se realizar. E este regressar ao trabalho acaobu por ser uma boa experiência, pois permite-te esquecer por algumas horas todos os problemas que presentemente tenho e tudo o que aconteceu nos ultimos tempos. Enquanto estou no local de trabalho, estou noutro mundo. É claro que fora das horas de trabalho, há que voltar a enfrentar tudo o que guardo dentro de mim... Parece incrivel, mas sinto-me mais deficiente agora do que antes quando era incontinente e usava fraldas descartáveis. Não sei se tal se deve ao facto de continuar, de outra forma, incontinente, embora agora tenha uma "bolsa", não sei se tal se deverá ao facto de ainda pouco tempo ter passado desde que entrei nesta nova fase da minha deficiência... o certo é que sinto-me mais deficiente, sinto-me mais diferente das outras pessoas do que antes... Algo que também tenho notado nos ultimos tempos: dificuldade em permanecer em locais com muitas pessoas... seja num café, seja num jardim, na praia... começo a olhar ao redor, começo a ver outras pessoas, casais de namorados, amigos, todos a falarem uns com os outros, a socializarem, a contarem histórias, aventuras... e eu começo por me sentir mal comigo mesmo, por não poder viver tudo aquilo que vejo à minha volta... penso imediatamente em sair de tal local, em refugiar-me na minha solidão... Pelo menos, tenho o trabalho e esse outro mundo no qual me sinto... normal. 22 de Outubro de 2009: Sinto-me cada vez mais a afundar. Estou vazio de sentimentos, vazio de sonhos, vazio de esperanças, vazio de objectivos. Sinto uma raiva enorme de tudo e de todos. Não tenho vontade para nada, não tenho vontade para trabalhar, não tenho vontade para conviver socialmente, não tenho vontade sequer para fazer uma simples compra. Tudo me parece tão inutil, tão desprovido de sentido. Tudo o que faço acaba sempre por dar errado, mesmo quando seria praticamente impossivel que tal acontecesse. Estou farto das pessoas à minha volta, estou farto de ver pessoas que têm oportunidade para fazer tudo e nada fazem, enquanto que eu gostaria de ter essa oportunidade e não a posso ter. Estou cansado. Cansado de me deitar todas as noites e pensar em tudo o que perdi, em tudo o que não posso ter nunca mais. Estou cansado de acordar todos os dias em sobressalto. Estou cansado de tentar viver neste mundo.
Tal como noutras vezes a vida te pareceu sem sentido e depois descobriste pequenas coisas que lhe voltaram a dar sentido, tenho a certeza que o mesmo vai voltar a acontecer. Não desistas nunca porque não sabes o dia de amanhã e novos avanços na medicina, novas técnicas cirurgicas estão sempre a aparecer. Não percas a oportunidade de seres feliz com o que tens. Conheço outras pessoas com outras deficiências e que também estavam "catalogadas" à nascença para não durarem muito tempo e que nesta altura têm 30 e 40 anos e são felizes mesmo com muitas limitações na sua vida. Eu sei que é duro mas tens de parar de chorar o que não tens e dares valor ao que tens e se sobreviveste é porque tens algo a cumprir. Força Fonte: